segunda-feira, 11 de maio de 2009

A MIMESIS NO SÉCULO XX: sobre a noção de representação...

A arte do século XX é frequentemente caracterizada pelo seu quase completo afastamento da mimesis como prática artística. Porém, este suposto afastamento relaciona-se sobretudo com uma determinada forma de compreender a mimesis, ou seja, a arte do século passado afasta-se fundamentalmente de um paradigma artístico que assentava na mimesis como uma prática concreta de imitação e representação da natureza. O que é definitivamente abandonado é, não tanto a mimesis enquanto tal, mas sobretudo, a predominância desse paradigma que vigorava desde o período renascentista e que postulava a arte como uma cópia da natureza, o mesmo é dizer, da realidade.
Essa forma de entender a mimesis como cópia, para além de conter óbvias ressonâncias de Platão, deriva igualmente do conceito latino de imitatio. No entanto, há uma outra forma de entender a mimesis artística e a sua relação com a natureza na qual aquela não é tomada somente como uma simples imitação do aspecto fenomenal dos seres, essa outra forma estabelece uma equivalência de identidades entre a capacidade geradora da natureza e a energia inventiva do artista. Neste contexto, o artista não se limita a copiar as formas preexistentes no mundo, ele é também, à semelhança do que sucede com a natureza, uma força criadora por si mesmo.
Estes dois modos de entender a mimesis atravessaram os séculos, contudo, a compreensão do artista como alguém que cria e inventa novas formas foi ganhando preponderância e já no período romântico estava em curso uma profunda separação entre a representação e a mimesis, sendo esta última considerada como algo de secundário para o artista enquanto criador. Em finais do século XIX, princípios do século XX, a relação mimética entre natureza e arte estava completamente invertida. A esse propósito veja-se por exemplos as teses defendidas por Nietzsche e Oscar Wilde que, muito embora as suas afirmações tenham implicações distintas, afirmam ambos que a arte não imita a natureza mas sim o contrário, ou seja, a natureza, e por consequência a realidade, imitam a arte.
O que está aqui em causa é uma perda de importância da realidade exterior como referente para a arte, isto em favor de uma progressiva autonomia da arte até se chegar à proposição "a arte pela arte". É precisamente este o ponto fulcral de um certo tipo de História da Arte do século XX, ou seja, a recusa da mimesis e a insistência na compreensão da arte como um percurso evolutivo que tem como fim uma total autonomia da arte em relação à realidade. Esse percurso triunfal teve um dos seus expoentes máximos nas teses do crítico norte-americano Clement Greenberg. Com efeito, para este autor de meados do século XX toda a História da Arte consistia no esforço dos artistas para se libertarem dos temas e conteúdos em favor de formas progressivamente mais puras e abstractas. Neste sentido o formalismo da arte moderna seria grosso modo o resultado directo de um caminho de contínua recusa da mimesis que se iniciou com o impressionismo, continuou com Cézanne, com o cubismo e posteriormente prosseguiu com a pintura abstracta de Kandinsky e Mondrian. Uma das etapas culminantes desse percurso foi no entender deste autor o expressionismo abstracto, daí a sua defesa acérrima dos artistas desse movimento como por exemplo Jackson Pollock, Barnett Newman e Willem de Kooning entre outros.
Esta história oficial do modernismo, se assim se pode dizer, viu-se mais tarde de algum modo legitimada pela filosofia de Derrida. Derrida defendeu que a linguagem é algo que remete exclusivamente para si mesma, ou seja, não há nada fora do texto. A linguagem é uma mímica que não imita nada, não remete para nenhuma realidade fora de si própria, produz apenas efeitos de realidade. Transpondo as teses de Derrida para a arte poder-se-ia igualmente afirmar que a arte é uma linguagem que nos remete exclusivamente para si mesma. Significa isto que a compreensão da arte não deve ser efectuada a partir de qualquer referência que lhe seja exterior. Assim sendo, o valor da mimesis para a compreensão da arte é praticamente nulo.
Aqui chegados estaríamos tentados a concluir que a relação entre a mimesis e a arte é algo de arcaico pertencente ao passado, contudo, há uma outra história por contar. Uma história de contornos mais trágicos em que o afastamento da mimesis não resulta de uma evolução no interior da arte em direcção a formas puras e abstractas, mas sim de uma rotura entre o sujeito e a realidade. A autonomia da arte não é apenas um jogo formal mas surge também da angústia perante uma realidade que deixou de ter coordenadas fixas e que por essa razão já não é tão imediatamente representável como até então. O olhar humano deixou de organizar o real, o advento da civilização das máquinas implica uma visão do mundo que já não depende de uma subjectividade. Tome-se como exemplo a fotografia, a acutilância e o detalhe com que esta consegue penetrar no real suplanta em muito a capacidade do olho humano, revelando desse modo uma realidade pouco habitual e envolta numa inquietante estranheza. Por outro lado, a multiplicação de fotografias multiplica simultaneamente os pontos de vista sobre a realidade pondo em causa a crença num mundo comum. Por tudo isto o real tornou-se algo de exterior, quase abstracto e a ancestral intimidade entre o homem e o mundo perdeu-se.
A arte anterior ao século XX baseava-se nessa relação de proximidade entre o homem e a sua realidade, a mimesis como cópia era uma expressão, uma reconstituição, da imagem dessa intimidade. Uma vez perdida essa intimidade já não faz qualquer sentido "copiar" o que já não existe. Assim, se como já vimos por um lado a arte vai percorrer um caminho das formas puras, por outro lado a arte vai tentar dar a ver essa realidade que se tornou estranha. Para o fazer terá de eliminar o carácter artístico da própria arte, ou seja, os artistas aspiravam a uma arte despida de artifícios que conseguisse apresentar o real tal como efectivamente é, sem vestígios de qualquer subjectividade. Neste contexto é então possível recuperar a mimesis enquanto prática artística válida, agora não já como uma cópia da realidade nem como sendo exclusivamente uma criação autónoma, mas sim como uma prática pela qual se estabelece uma passagem entre a realidade e a arte. Tendo em atenção esta última forma de entender a mimesis, pode-se afirmar que o real regressa à arte sobre a forma de trauma. A realidade parece possuir uma vida autónoma, exterior, que nos agride e nos aparece como estranha, como se fosse constituída por sonhos e pesadelos.
Repare-se que no século XX, paralelamente à história oficial do modernismo baseada na evolução das formas em direcção à abstracção, corre uma história da arte cheia de melancolia e repleta de seres surreais, de corpos desfigurados, de paisagens fantasmagóricas cuja origem em certos casos remonta até à época medieval. Pense-se, entre outros exemplos possíveis, em Max Ernst, Francis Bacon, Giorgio de Chirico, Egon Schiele ou Lucien Freud. É sintomático que Clement Greenberg tenha tentado desacreditar o surrealismo precisamente com base no facto de o considerar reaccionário por não ter evoluído para a abstracção. No entanto, creio que seria mais justo compreender muitos dos artistas defendidos por Greenberg não como estando apenas preocupados com o aspecto formal das suas obras, mas também partindo da relação de angústia que tinham com o real. A falta de intimidade com o real era a condição da autonomia abstracta da sua arte, por essa mesma razão as suas obras não são somente um jogo de formas plásticas, mas também um reflexo de uma inquietante estranheza. A este propósito repare-se, por exemplo, em certas mulheres que aparecem por entre as cores de uma obra de Willem de Kooning, nas formas quase orgânicas de Arshile Gorky ou até nas linhas nervosas e negras de Jackson Pollock. Assim, também estes artistas podem ser compreendidos a partir da noção de mimesis, com efeito, através das suas obras dá-se uma passagem dessa estranha realidade para a arte.
Um outro aspecto da relação entre a arte e realidade tem a ver com a chamada Pop-Art. Neste caso a arte já não copia a realidade directamente mas sim uma imagem da realidade. Quer isto dizer que arte seria neste caso uma espécie de cópia em segundo grau. Pensemos num exemplo, Andy Warhol efectuou inúmeras obras a partir de imagens jornalísticas ou provenientes do cinema e da televisão, simulacros. Se quiséssemos retomar Platão diríamos que se tratam de cópias de cópias e que por essa mesma razão afastam-se mais da verdadeira realidade. Porém, o que ressurge por detrás desta estratégia é mais uma vez a incapacidade para o sujeito representar a realidade. As obras de Warhol tentam apagar a presença de um autor, o mesmo é dizer, tentam captar a realidade através da ausência de uma subjectividade, "quero ser como uma máquina" afirmou o referido artista. Por outro lado, existe nessas obras uma tentativa não apenas de duplicar as imagens sem mais, mas sobretudo de retirar determinadas imagens do circuito mediático em que foram produzidas e restituí-las de um outro modo. Significa isto que as obras de Warhol, como aquelas em que aparecem as actrizes Marylin Monroe e Elizabeth Taylor, os desastres de automóveis ou as cadeiras eléctricas, não são simples reproduções equivalentes às mesmas imagens num jornal, numa televisão ou no cinema. Warhol, ao reproduzir essas imagens dá-lhes uma carga traumática, ou seja, uma outra realidade, que quando estavam emergidas no conjunto indiferenciado das imagens mediáticas não pareciam possuir. Assim, também neste caso é possível fazer apelo à noção de mimesis como modo de fazer a passagem entre a realidade e a arte.
A arte do final do século XX é herdeira destes temas e a sua relação com os diversos aspectos da realidade é mais forte do que nunca. Tão forte que frequentemente se deixa submergir pela realidade e torna-se difícil, quando não impossível, perceber o que pode distinguir um determinado objecto artístico de um manifesto político ou um ready-made de um outro qualquer banal objecto utilitário. Na verdade, sem a mimesis, ou seja, sem que haja uma passagem, uma mediação, entre a arte e a realidade, a arte oscila entre dois extremos. Por um lado uma espécie de meta-arte frequentemente estéril que joga com as formas e conceitos artísticos e tem o seu contraponto no decorativismo pós-moderno, por outro lado uma arte empenhada em causas políticas e sociais que por vezes pouco mais é do que um panfleto que, de forma "inocente", pretende denunciar nas galerias e museus os males da sociedade em que vivemos.

Bibliografia

Derrida, Jacques, La Dissémination, Éditions du Seuil, 1972, Paris
Foster, Hal, The Return of the Real, The Mit Press, Cambridge, London, 2001
Gebauer, Gunter & Wulf, Christoph, Mimésis, Les Éditions du Cerf, Paris, 2005
Greenberg, Clement, Modernist Painting, em "Art in Theory 1900-1990"
Edição de Charles Harrison e Paul Wood, Blackwell, Oxford, 2000
Halliwell, Stephen, The Aesthetic of Mimesis, Princeton University Press, New Jersey, 2002

Rui Lopes

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